Olá leitor, agradecido por prestigiar esta homenagem ao mestre (que ele não leia que o chamei assim).
Aqui, apenas uma pequenina homenagem pelos 68 anos, nesta terça-feira, dia 19. Viva Chico Buarque de Hollanda.
Resolvi unir o agradável ao muito agradável (Chico e Drummond).
Notas sobre A banda
Por Carlos Drummond de Andrade
O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando
coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos
alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força,
capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. Amor que seja navio, casa,
coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o
absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.
A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não,
escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas subiu assim
mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa.
Viva a música, viva o sopro de amor que a música e banda vem trazendo, Chico
Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em
ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança
perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e
fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de
onde fugiu a beleza, o pó no ar, na falta de ar.
A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira
e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos
botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos
precisando de amor. Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados
de guerra. Não convida a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar
com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta banda
é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio maestro Anacleto
Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem se ver, o contentamento
descontente, a dor que desatina sem doer, abrindo a ferida que dói e não se
sente, como explicou um velho e imortal especialista português nessas matérias
cordiais.
Meu partido está tomado. Não da ARENA nem do MDB, sou desse partido
congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na
banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele não obedece a cálculos da
conveniência momentânea, não admite cassações nem acomodações para evitá-las, e
principalmente não é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo
amor, e de amar pela compreensão.
Se uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o aparecimento
da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de signos ameaçadores, é porque
há uma beleza generosa e solidária na banda, há uma indicação clara para todos
os que têm responsabilidade de mandar e os que são mandados, os que estão
contando dinheiro e os que não o têm para contar e muito menos para gastar, os
espertos e os zangados, os vingadores e os ressentidos, os ambiciosos e todos,
mas todos os etcéteras que eu poderia alinhar aqui se dispusesse da página
inteira. Coisas de amor são finezas que se oferecem a qualquer um que saiba
cultivá-las, distribuí-las, começando por querer que elas floresçam. E não se
limitam ao jardinzinho particular de afetos que cobre a área de nossa vida
particular: abrange terreno infinito, nas relações humanas, no país como
entidade social carente de amor, no universo-mundo onde a voz do Papa soa como
uma trompa longínqua, chamando o velho fraco, a mocinha feia, o homem sério, o
faroleiro... todos que viram a banda passar, e por uns minutos se sentiram
melhores. E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha
outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma
da gente.
Carlos Drummond de Andrade Correio da Manhã, 14/10/66